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ONDE MORA O MEU SILÊNCIO

“Uma única chave é necessária para acessar tudo aquilo que reside em mim”. Não precisei dizer mais nada, apenas sussurrar essas palavras em seu ouvido para que se encaminhasse em direção à cômoda e abrisse as gavetas com a chave que lhe entreguei.
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Carrego em meu pescoço uma chave, estilo colonial; como daqueles móveis antigos, de madeira maciça, que sempre me fazem perguntar quais são os segredos que ali se escondem. Caminho lentamente e subo os degraus da antiga escada de madeira em formato de caracol,as pernas tremem...as pessoas me observam...
Olho para frente, convicta de meu dever...
A cômoda está lá, a minha espera. Seus segredos, trancados, aguardam a minha chegada, prontos para serem revelados...

Ajoelho-me diante daquele móvel, como se fosse um pequeno altar, o momento é ritualístico. Retiro a chave de meu pescoço e tento encaixá-la na fechadura de uma das gavetas - ela é relutante, não gira, não abre. Passam-se alguns minutos, momentos de tensão. O público à espera do que está por vir...
 

A chave não abre...
A chave não gira...

 

Os acontecimentos agregam sentidos...
 

Quando por fim, a gaveta se revela, retiro dali um livro cujas páginas são de toque áspero,feitas de lixa desgastada: meu desgaste emocional, mental e físico durante períodos de depressão...
Retiro também um giz de cor branca, preciso escrever, preciso me confessar, preciso pedir perdão:

 

“Há abismos em mim, me perdoa, me perdoa pelos meus abismos, há abismos em mim, me perdoa, em mim há abismos, há abismos em mim, me perdoa, me perdoa pelos meus abismos,há abismos em mim me perdoa, em mim há abismos....”

 

Um mantra repetido inúmeras vezes...
 

Peço perdão, mas preciso me perdoar antes de tudo reduzir-se a pó
Não há mais giz para continuar...

 

“Me perdoo”

 

Estou pronta para levantar...
Estou?
Um pouco hesitante, talvez

 

“Me perdoo“.

 

Esta frase, escrita com o pó que sobrou daquele giz é tão vacilante quanto a minha segurança sobre o momento, mas me levanto, estou nervosa...
 

Percebem o meu nervoso?
O meu olhar de nervoso?

 

Paro em pé por alguns segundos e observo todos a minha volta. Há uma moça ruiva, desconhecida, à minha esquerda. Cabelos longos, soltos, vão além dos
ombros, franja para o lado, estatura mediana: é ela. Caminho em sua direção, observo-a fixamente. Aproximo de seu corpo, até demais. Todos nos olham. Meus olhos encontram os seus por instantes, então lhe entrego a chave, retirando de meu pescoço e coloco logo ao seu.

 

“Uma única chave é necessária para acessar tudo aquilo que reside em mim”. Não precisei dizer mais nada, apenas sussurrar essas palavras em seu ouvido para que se encaminhasse em direção à cômoda e abrisse as gavetas com a chave que lhe entreguei. Seu primeiro passo é dado, então dou o meu, em retirada. Saio lentamente, as pernas tremem.

As outras gavetas são reveladas por outras mãos; revelam, cada uma, partes de uma única frase: 
"O encontro de si acontece com o mistério sobre o próprio ser, que em um estado de ânsia, mergulha no âmago de sua existência". Frase esta escrita nas laterais das gavetas, locais ocultos enquanto o objeto permanece trancado.Revelam também a terra dos tempos de angústia, quando em minha imaginação; nela me afogava, ou o livro de minhas confusões mentais: camadas e camadas de tecidos transparentes, manchados e costurados, formando um volume, ocupando o espaço, ocupando minha mente. Um livro de pequenas saudades: um livro antigo, encontrado em sebo e guardado durante alguns anos em meu quarto. Nele, guardei uma flor, durante um tempo esquecida, assim como aquilo que guardei e esqueci em mim. No decorrer das páginas, algumas palavras do próprio livro foram grifadas, juntas, constroem a frase: "algo que guardei em mim", referente a algo que não consegui ter acesso durante os períodos de depressão e que agora se desvela. As mãos revelam também um sapatinho de bebê com uma inscrição: “...e então...”. Um sapato: símbolo de uma jornada, de uma caminhada. Quem fui? Quem sou? Quem serei?... E então?
E então se chega nas confissões, naquelas páginas ásperas que anseiam pelo perdão e, quando perdoo, quando me perdoo, abre-se a última gaveta, onde o silêncio, por fim, "fez-se".

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