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EU ESTAVA NUM TEMPO QUE QUERIA FICAR MAIS TEMPO

Relatos e fotografias:

Um pouco antes do hoje se tornar ontem, os pontos de luzes presentes nos prédios denunciavam a existência de vidas que ainda não se recolheram. A estrada para chegar à rodoviária Tietê, em São Paulo, sempre me pareceu longa quando criança, tempo que aproveitava para olhar pela janela e ver aqueles pontos luminosos que lembravam vaga-lumes, vaga-lumes urbanos. Alguns eram brancos, outros amarelados, e haviam também os vermelhos que contrastavam com o forte azul da noite. São Paulo é uma cidade que nunca dorme ou, como definiu uma amiga, Kayna, São Paulo é cidade luz.

É na estrada que nos levava até a agitada capital, que memórias de minha infância e da infância de Kayna se encontram. Naquele tempo, embora o destino não havia nos dado a chance de nos conhecermos,  as experiências que tivemos ainda quando crianças foram as mesmas: da janela do carro ou do ônibus, observávamos atentamente a atmosfera luminosa  formada por todos aqueles vaga-lumes que pareciam querer alcançar o céu.
Kayna vivia no interior, mais especificamente, em Rio Preto,  mas tinha costume de visitar a capital quando criança, onde agora vive. Já eu morei na capital paulista até completar 6 anos de idade, depois vim para Curitiba, minha terra natal. Quando aqui me estabeleci, visitei São Paulo algumas vezes. Kayna também tinha costume de fazer o mesmo, ao menos, uma vez por ano, quando as luzes natalinas deixavam a cidade ainda mais viva. Diante daqueles inúmeros pontos de luz, havia algo que chamava ainda mais a nossa atenção: uma árvore feita de luz verde, que brotava do alto de um prédio, o símbolo da velha editora Abril. A sua luminosidade sobressaía diante de todos os vaga-lumes, fazendo-me perguntar se todos aqueles brilhantes insetos urbanos sentiam-se atraídos pela árvore assim como eu. Não me recordo do nome da estrada que me levava em direção àquela luz verde, nem eu e nem Kayna. Preferimos assim. Nomear as coisas muita vezes empobrece a imagem delas, como disse Manoel de Barros, em O livro das ignorãças (2016, p. 20).

A estrada  que me levava à cidade de São Paulo continua sendo o caminho dos vaga-lumes. Um caminho que retomei após quatro anos sem pisar nesse lugar. Era final de tarde quando cheguei, horário em que os vaga-lumes começam aparecer. Mandei mensagem para Kayna dizendo que logo chegaria a sua casa. Ficaria por ali quase duas semanas. Seriam poucas as horas dos dias em que poderíamos matar aquela saudade que só duas pessoas que se amam muito sentem quando moram em lugares distantes. Reservamos nossas conversas para o café da manhã e as horas antes de cairmos no sono. À tardes, quando Kayna estaria em seu trabalho, optei por explorar a cidade e conhecê-la novamente.
São Paulo sempre foi, para mim, uma combinação estranha entre sentimentos de afetividade e medo. Lembranças da infância que se combinam com relatos receosos de minha mãe. Enquanto crescia afastada da cidade dos vaga-lumes, memórias romantizadas da época de infância misturavam-se às tristes narrativas. O que era São Paulo para mim? Foi a pergunta que  fiz. Embora eu a tivesse visitado outras vezes, era a primeira em que finalmente a conheceria de fato: estaria sozinha andando por suas ruas.
A materialização das palavras poluição e criminalidade tornou-se motivo para pessoas que preferem uma vida de sossego - como a minha mãe - nunca mais retornarem. As cortinas de fumaça e os sons das sirenes não camuflam, contudo, aquilo que mais me atrai em uma cidade: seus espaços culturais e a cordialidade de seus habitantes. Quando retornei à cidade de meu passado, estava preparada para observá-la com outros olhos, conhecê-la e me apresentar a ela, como se nunca tivéssemos nos conhecido. Eu era nova para ela, e ela para mim. Nós duas havíamos mudado ao longo dos últimos 20 anos, estávamos diferentes, mais crescidas, com certeza. Ao me abrir a ela, demorou um pouco para que se apresentasse a mim, não porque não quisesse, mas a pressa e o seu ritmo frenético não permitia tempo para apresentações e nem para conversas. Foi um exercício de paciência até que ela se dirigisse a mim nas vozes dos mais diferentes nomes: primeiro em nome de um amigo, Carlos, que a meu convite, registrou as fotografias que aparecem aqui como um registro destas relações. Depois se apresentou por meio de uma fisionomia nada familiar: tinha olhos tristes, prestes a passar por uma cirurgia. Sua pele era feita de várias camadas, formando uma cobertura grossa,  que indicava uma vida de muito trabalho. Vestia-se de forma  simples: bermuda amarela e chinelo.  Falava de um jeito confuso, nem sempre respondendo às perguntas que lhe fazia: "Faria-Lima  pra mim aqui é bom (...) tem esse negócio bonito , tem aquele bonito ali, aquilo é bonito, bonito", repetia frequentemente. São Paulo aqui  apresentou-se doce, humilde e inocente,  nas vontades de alguém que desejava apenas um retrato seu - aproximou-se  para ter sua imagem capturada pela câmera que registrava o momento.  
Não demorou muito para que a cidade tomasse forma de uma mulher, uma senhora  de cabelos loiros, bastante interessada em conversar sobre política e sobre suas experiências. Formada em Física, trabalhou no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN) por 40 anos, parecia ter muito orgulho disso. Hoje, aposentada, possui um ritmo que se contrasta com o ritmo dos acontecimentos a nossa volta, possui tempo para papear, diferentemente de grande parte das pessoas que, às pressas, estão sempre resolvendo seus afazeres. 
Com o passar das horas , a cidade tornou-se mais acessível e outros nomes surgiram: Hanna, Tainá, Vitor, Letícia, outra Letícia, além de outros mais que já não sei. Todos possuem suas recordações. Recordações que foram trazidos à tona e à convite de um aviso que dizia: "Memórias da cidade: conte-me uma sua que contarei uma minha". Um dispositivo que, somado ao banco vazio posicionado logo a minha frente, possibilitava trocas. Era sempre assim: as pessoas sentavam-se, contavam-me suas memórias - memórias desta cidade que um dia foi minha também - e eu relatava uma memória da cidade onde moro atualmente. Contudo, nem sempre os avisos eram suficientes, havia momentos - geralmente quando observava uma abertura e um interesse por parte dos transeuntes - em que, sentada em meu banco, dirigia-me às pessoas ao meu redor: "Olá, gostaria de conversar?" . Em alguns momentos as respostas vinham em forma de sinais em negativo, outras em forma de sorriso e em frases como: "agora não posso, mas volto mais tarde". Foi em um desses momentos em que, ao abordar, um grupo de doze jovens deu meia volta e fez um círculo em meu entorno. Duas meninas do grupo - jovens entre 17 e 20 anos - se pronunciaram para contar sobre seus momentos mais importantes na cidade de São Paulo. Uma terceira, com o olhar empolgado, ansiosa para falar comigo, e demonstrando grande interesse pelo trabalho, não relatou necessariamente uma recordação, mas se ofereceu a orar para mim. Eu, uma pessoa sem religião - embora acredite em forças superiores - poderia ter dito "não", mas, mais do que uma tentativa de converter, ouvir aquelas palavras foi, para mim, uma narrativa de alguém que me desejava, a partir de sua crença, algo positivo. Uma forma, diferente da que eu previa, de estabelecer conexões. E assim, histórias desenrolaram ao longo das quatro horas que ali permaneci, naquela praça conhecida como Largo da Batata. Batata porque, como me contou duas senhoras, apaixonadas pela pastelaria que ali residia, era um local de comércio de cenouras, cebolas e, obviamente, batatas.
Das histórias que ouvi, muitas foram gravadas, depois transcritas no papel e colocadas em envelopes, ganhando formato de cartas. Em seguida, cada uma delas foi deixada no local correspondente. Um desses lugares foi o Parque Trianon, localizado na Avenida Paulista, em frente ao MASP (Museu de Arte de São Paulo). Duas memórias partiram deste lugar até então desconhecido para mim. Enquanto visitava esses espaços, os sons das vozes que narravam as memórias eram reproduzidas pelo gravador. Caminhava ouvindo as memórias. Meu olhar de turista misturava-se ao olhar dos habitantes daquela cidade. Os passos dados por eles agora eram dados por mim. Visitei praças, shoppings, parques, caminhei por ruas desconhecidas e conheci pessoas que me auxiliaram na localização. A cada deslocamento, sons da cidade eram gravados. No metrô, os anúncios das estações ecoavam pelos vagões, frases como "Próxima estação [Next Station]: Fradique Coutinho" em uma voz feminina  sobressaía entre o barulho das rodas do transporte nos trilhos metálicos, as conversas paralelas e, por vezes, entre os sons dos celulares avisando a chegada de uma nova mensagem no WhatsApp. Nas ruas, os sons das passadas eram abafadas pelo barulho dos carros, as buzinas frequentes, o motor das motos e das portas dos ônibus se abrindo.  Por vezes, uma música em volume máximo cortava os sons padrões. Sons que se dissipavam entre o conjunto de árvores estrondosas cujas raízes proeminentes serviam de apoio a um corpo cansado. Enquanto caminhava pelo parque Ibirapuera, ouvia as lembranças de um jovem cuja memória de infância consistia em andar de bicicleta, naquele mesmo local, com o seu pai. Ali, em meio aquelas árvores, onde a cidade tem o seu descanso, recordei-me da frase dita pelo meu amigo Carlos: "Eu estava num tempo que queria ficar mais tempo". 

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